Eu morei em Paris de fevereiro 1994 a julho 1995. Posso dizer, sem a menor sombra de dúvida, que não fui feliz por lá. Este período inclui a morte do Ayrton Senna, tudo que passei durante aquele fim de semana trágico e os mais que difíceis meses seguintes. E eu não subestimo nenhum pouquinho o impacto infringido na minha saúde mental. Assim mesmo, acredito que o que mais atrapalhou a minha adaptação ‘a capita francesa foi a completa falta de diversidade – não vou falar do mau humor e da grosseria reinantes na City of Love (?!?!) desta vez.

Os dias eram um exercício incessante em tentar se encaixar, em ser aceita como eu sou. Batalha perdida antes mesmo de começar. Para os franceses, a melhor comida é a francesa, os melhores costureiros nasceram lá, os melhores perfumes são produzidos no país, a Académie Française é mais respeitada do mundo ….. Não tenho tempo de enumerar mais. É sem fim. Ou você se enfrancesa ou não se encaixa mesmo! Bom, eu não me encaixei.
Acabo de ler um artigo no The Economist intitulado Qual a melhor língua?. Nele, Johnson escreve :
Os franceses dificilmente estão sozinhos em acreditar que sua língua é especialmente poética, emocional, lógica, precisa, acessível ou rica. Mas acontece que as coisas que as pessoas valorizam em seus próprios idiomas geralmente podem ser as mesmas coisas que os estudantes estrangeiros odeiam.
Na sequência, ele menciona a diferenciação no tratar com as pessoas: o tu e vous. Segundo ele, tu (informal) é usado para os familiares e amigos; vous (formal) para todos os outros. Certamente foi o que me explicaram os professores da Alliance Française, onde eu frequentava 3 horas de aulas diariamente. Na prática, porém, a coisa complica um pouco. E, se você usa errado…… os franceses conseguem dar coices com o olhar.
Pisei em ovos por meses. Preferi chamar todo mundo de vous. Afinal, é melhor tratar com mais respeito do que merecem do que o contrário. Eu estava tentando me adaptar! Os jovens usam tu mais livremente. O mesmo acontece com os profissionais liberais e o povo do setor chamado criativo. Comecei a, inconscientemente, montar umas regrinhas para tentar aprender, o mais rapidamente possível, como esta ‘seleção’ funcionava.
Quando já passeava faceira pelos boulevards e até me arriscava a uma conversa mais audaciosa com colegas, assisti a um filme que botou tudo por água abaixo. Não lembro o nome e nem quem eram os atores. Mas a cena nunca mais saiu da minha cabeça. Era um casal entre 30 e 40 anos, ambos casados com outras pessoas e numa relação íntima que, em se tratando de franceses, tinha óbviamente uma conotação filosófica existencial.

Eles se encontraram num quarto de hotel e, depois de cenas fervorosas de sexo tão explícito quanto os anos 90 permitiam, iniciaram a tal conversa enquanto se vestiam. Eu ainda tinha alguma dificuldade em entender todas as palavras de um diálogo num filme. A mistura de coloquial e específico te embaralha a cabeça. E isto é uma especialidade por lá. Você acaba entendendo uma de cada 2 frases. O tempo que repete na cabeça a 1a para poder entender direito, a frase seguinte já se foi.
“Prouver que j’ai raison serait accorder que je puis avoir tort”(Provar que eu estou certa seria admitir que eu poderia estar errada), disse a mulher, citando Beaumarchais. “Mais vous pouvez pas être sûr tout le temps“(mas você não pode estar certa todo o tempo..”, replicou o homem. “Dites-moi ce que vous en pensez” (Me diga o que você acha”, retrucou a mulher. ESQUEÇAM A FILOSOFIA. NÃO IMPORTA QUEM ESTÁ CERTO. Os caras acabaram de explorar cada cantinho do corpo um do outro e se tratam por VOUS ?!?!? PQP, pensei, quando é que vou poder ser informal?
I rest my case.
Amei o texto. Estive em Paris com você, e você descreveu em palavras como realmente me senti lá. Mas devo dizer que amei Paris, a cidade.
GostarGostar
Adoro eus comentários. Acho um pouco exagerada a obsessão em traduzir tudo! Afinal, nós não traduzimos joie de vivre ou laissez faire. E, do mesmo modo, acho ridículo usar palavras estrangeiras para tudo. Os shoppings brasileiros não fazem mais liquidação, só sale.
GostarGostar
Gosto da língua francesa só porque os franceses traduzem tudo!! Não colocam o inglês sem mais nem menos no seu cotidiano como nós, por exemplo! De resto concordo plenamente com você, tu et vous é complicado mesmo e eles se acham os melhores do mundo! Até parece! Excelente seu texto.
GostarGostar
você me lembrou uma campanha publicitária onde um turista perguntava onde está a torre Eiffel de costas para ela. O parisiense muito polidamente dizia que não sabia ( e estava de frente para ela!). Devia ser uma campanha “Não venham passear por aqui” …Acho que a nova geração está mais cosmopolita , tenho notado diferenças para melhor desde os anos 90, mas pode ser só otimismo meu. Adorei o segundo sentido que você extraiu da cena … Além do mais , o racional e a filosofia podem atrapalhar muito naquelas horas.
GostarGostar
Hmmmm Lembro vagamente desta campanha, agora que você mencionou. E parece ainda mais sem sentido:) E eles esperavam aumento de turistas?!?
GostarGostar
Verdade mesmo sobre como acertar na língua francesa e o contexto Tu e Vous, mas amo aquela musicalidade do idioma falado.
GostarGostar
hahaha. Conotação filosófica existencial… entender toda traição, ou como se diz no Brasil, todo corno dessa maneira, só em francês mesmo e de maneira bem formal.
GostarGostar
Ha ha verdade
GostarGostar